Ontem decidi festejar a minha liberdade num dolce fare niente. Decidi não assistir a paradas, não me entediar com programas de televisão, com programas comemorativos autárquicos, com cravos vermelhos e canções alentejanas.
O sol, apenas o sol me brindou neste dia pleno de paz, tranquilidade, harmonia, de desopressão. Poderia dizer que este dia foi um dia igual aos outros, não fosse a inércia. Mas não, foi diferente. Através dos relatos dos meus pais recuei 30 anos atrás, para saber o que realmente, emocionalmente, se passou nesse dia.
Quando se deu a Revolução tinha eu três anos e meio, não me recordo de nada. E mesmo depois, já na escola, poucos foram os relatos relativos a esta data.
Perguntei então aos meus pais onde estavam, o que sentiram, tiveram medo, saíram à rua?
Ambos estavam a trabalhar, e incrédulos ouviram as notícias que iam escorrendo pela rádio, sinal por si só, de que alguma coisa já tinha mudado.
"Naquele tempo ninguém ligava ao noticiário. Sabíamos que era tudo forjado, tudo para inglês ver. Deus, Pátria, Família, era tudo o que transmitia a televisão ou a rádio. Tudo em prol da moral, dos bons costumes, da nação una e totalitária"
Não saíram à rua, não cantaram a Grândola Vila Morena, naquele dia. Por uma razão muito simples, moravam na província e a acção desenrolou-se em Lisboa.
Mas, por dentro, e a medo, também por fora, sentiram pela primeira vez nos seus 25 e 30 anos de existência, que podiam finalmente ser livres, na verdadeira acepção da palavra.
Que sabemos nós, jovens de trinta anos, disto?
Nós que sempre fomos livres.
A quem nunca nos foi proibido ler o que quer que fosse, a quem nunca nos foi proibido ouvir a música de quem quer que seja, a quem nunca nos foi proibido viajar para onde quer que quiséssemos, a quem nunca nos foi proibido falar do que quer que seja, a quem nos é permitido ter blogs, para dizer bem ou mal de quem quisermos, a quem nos é permitido manifestarmo-nos quando não estamos de acordo com o sistema, a quem nos é dada uma educação, a quem nos é facilitado o crédito, a quem sempre teve liberdade?
Lembro-me tão bem de, passados já alguns anos do 25 de Abril, existirem ainda certos assuntos que eram tabu lá em casa. O hábito, a opressão e o medo tinham criado um hábito tão grande ao longo daqueles anos que foi difícil, para aquela geração, desprenderem-se dos receios que tinham, mesmo já com a liberdade garantida.
Por isso, a evolução foi lenta. Mas, passados estes anos todos, e tentando comparar os relatos dos meus pais com aquilo que vivo agora, não há escala com desníveis tão grandes que me permita fazer a comparação.
Talvez se tenham perdido alguns valores, sobretudo morais, fruto da exaltação da liberdade. Mas, não me venham com saudosismos salazaristas!
Podem-se ter perdido valores, mas em comparação com o que se ganhou, isso é nada. E se nós quisermos, podemos utilizar a liberdade conquistada para corrigir, precisamente, as arestas que resvalaram. Basta ter força e determinação. Basta revoltarmo-nos contra aquilo que achamos que está errado, porque temos liberdade para o fazer.
Porém, o português de hoje, acomodou-se à sua liberdadezinha, vai criticando daqui e dali, mas não quer é que o chateiem. (um pouco à semelhança do que eu fiz ontem, mas eu também sou filha do sistema).
Uns eternos insatisfeitos (e com razão), mas sem a determinação suficiente para fazer mudar as coisas.
“Naquele tempo desconfiávamos de todos e todos desconfiavam de nós. Era um clima de suspeita que pairava sempre no ar. E nós até sabíamos quem eram os informadores.
Davam-lhes uma arma e recebiam quinhentos escudos. Houve um dia em que o filho de um desses informadores levou a arma do pai para a escola.”
“Não podíamos juntarmo-nos na rua. Se estivéssemos três ou quatro amigos a conversar, vinha logo a polícia para nos mandar dispersar.”
“O teu avô esteve preso 12 dias por o terem acusado de ouvir ler o jornal O Avante.
Nós sabíamos quem é que o passava e até sabíamos onde é que era feito. Era ali para os lados de Alvaiázere.”
“Eu tinha dezoito anos quando decidi ir ao cinema ver um filme em que a história relatava a vida de uma jovem que tinha engravidado e tinha imagens do parto. Não me deixaram entrar, acharam que eu não tinha idade suficiente.”
“Lembro-me de uma vez, inconscientemente, ter andado a distribuir uns panfletos, que só mais tarde soube que faziam parte da campanha de Humberto Delgado. Podia ter sido presa por isso.”
“Eu votei só uma vez antes do 25 de Abril.
Eu nunca votei.
Não valia a pena, já sabíamos o resultado e ainda por cima, as pessoas que estavam na mesa de voto e que recebiam o nosso voto, marcavam o boletim se desconfiassem que éramos contra o regime.”
Ainda temos muito que aprender com a liberdade conquistada. Temos o direito ao voto e não votamos, temos uma democracia cheia de erros e não os corrigimos, temos uma economia de rastos, fruto de politicas desgovernadas e assistimos impassíveis. Temos a oportunidade de mudar o rumo deste país e não o fazemos.
Habituámo-nos por demais ao que nos querem dar e não exigimos mais do que isso.
Não tiveram medo que depois de um regime fascista ganhassem, com a revolução, um regime totalitário comunista?
“Não, aquela liberdade já ninguém nos tirava!”
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